quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sempre o Olhar

Ele atravessava aquela rua uma vez por semana. Toda semana. E ela estava sempre lá.

A pequena janela era mais um olho sem par, encarapitada no topo do edifício caolho, tão antigo que parecia ter brotado do chão antes mesmo da cidade ser semente.
Ele não precisava ver; sentia o olhar em cada centímetro cúbico de si.

A persiana, feito uma pálpebra,sempre ligeiramente erguida. A penas o suficiente para que a pupila por trás dela se dilatasse quando ele passava. Era quando ela permitia a entrada de uma réstia de luz.

Tão logo seus passos o conduziam para além do campo de visão, a pálpebra era cerrada, como se o domínio da função daquela janela pertencesse ao mundo real apenas enquanto ele passava por ali.

Apenas o olhar ousava cruzar janela afora. A penas o luar esgueirava-se janela adentro.

Sempre à mesma hora. Sempre os mesmos movimentos. A penas as lunações variavam.

Sentir-se observado era um incômodo menor do que sua curiosidade. E desaparecia tão logo ele adentrava o prédio da escola.
Após o "-Boa noite, professor", sempre acompanhado de um sorriso macio do porteiro, ele  pensava apenas na aula a ser ministrada em seguida.

Entretanto, o olhar sempre fora algo muito representativo em sua vida. Perdera a conta das vezes em que seus olhos verdes e oblíquos lhe haviam criado problemas. Fossem apenas verdes, quem sabe...mas eram compostos de centenas de centelhas esverdeadas de todos os tons da cor.

Não era algo incomum uma ou outra aluna perder-se naquele olhar. Mas eram sempre mantidos os limites do platônico amor das pupilas pelo mestre.

Na saída da aula, alguém o aguardava. O prédio. A janela. A persiana erguida, pela primeira vez...

Por trás dela uma pupila dilatada, ferida vermelha que sangrava  ressentimentos.

Sem poder identificar-lhe o rosto, velado pela pouca luz, o professor sentiu o sangue gelar ao antecipar-lhe as intenções. O corpo dentro do vestido vermelho encostado ao umbral perigosamente baixo da janela.

De qualquer modo, não haveria tempo para qualquer atitude. A lágrima rubra precipitou-se no vazio, como um olho que salta da órbita.

Foi uma queda muda para todos os transeuntes. O grito dançava apenas nos ouvidos dele.

No fim, a chaga rubra no chão atraiu as moscas. Pessoas aglomeravam-se em camadas, movidas pela mórbida bisbilhotice tão desprovida de humanidade.

Os pés dele pareciam ter criado raízes profundas. A penas o pensamento corria.

Quando o grito finalmente se calou em sua cabeça, estranhas batidas assumiram o posto.

Foi quando ele lembrou  "O Coração Delator", de seu escritor favorito E.A.Poe...

Sim, as batidas que ele ouvia eram de um coração, que durante muito tempo batera por ele, silenciosamente.
Somente agora ele descobriria...

No ímpeto de quem teme a pré ciência do fato, ele abriu caminho entre os curiosos, alcançou o corpo e foi devorado por seu medo mais monstruoso: o olhar que refletia a escuridão da morte da noite de lua nova lhe era desgraçadamente familiar.
Despisse-lhe a frieza da ausência de vida e eram aquelas bolas de gude que o seguiram aonde que que fosse, no ano anterior.

Assentavam-se na face rechonchuda da pupila na última classe da última fila, junto à parede. Aquela, sempre calada.

Ele abriu a boca, mas o grito de horror ficou pendurado, como o pedaço rasgado do vestido, junto ao peitoral da janela.
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Ignorando o murmurinho enlouquecido em torno, eles compartilharam um último momento de silêncio.


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