sábado, 24 de agosto de 2013

Saldo

Conheceram-se quando ela tinha 17 e ele, 18.

Ela, melhor média da turma, presidente do grêmio estudantil e membro do clube de xadrez da escola. Reconhecia no primeiro acorde todas as melhores sinfonias. Morena, do tipo mignon. Quarenta e os certos quilos de uma feminina delicadeza, quase submissa, denunciada apenas pelo olhar machadiano, ligeiramente oblíquo e incertamente dissimulado.

Ele, estudante média standart. Passava o ano zoando colegas e professores, conhecia de antemão os últimos lançamentos vocabulares mais imundos e obtinha médias escolares semelhantes ás médias térmicas do inverno gaúcho. No final, gabaritava os provões de cinco a seis disciplinas, em uma injustiça poética de transformar qualquer professor em uma criatura semelhante ao Mr. Hyde.

Ela curtia pubs de estilo londrino ou irlandês, com música ambiente que  perfumasse o ar, ou uma boa banda de jazz ou blues, localizada no melhor ponto acústico.

Ele curtia estacionar o carro junto a qualquer meio fio, abrir a tampa traseira e exibir toda a potência sonora de sua masculinidade, na voz de qualquer pseudo-cantor que desse instruções de como se dança.

Uma equação que tentasse estabelecer o ponto onde as retas destas duas vidas se interceptassem tenderia a resultar em um número irracional.

Mas quem disse que existe racionalidade no destino?

Porém não se iluda, leitor. Isto não é uma história inspirada em Eduardo e Mônica.

A culpa foi da banca de revistas, de espaço insuficiente para conter duas culturas tão distintas.
Enquanto ele empregava todo o seu poder de concentração na escolha da melhor Playboy, ela subitamente derrubou seu exemplar de colecionador, edição capa dourada, dos melhores contos de Poe.

Num acesso de cavalheirismo que jazia até então adormecido nas profundezas de sua ogrice, ele se abaixou para alcançar-lhe o livro.
Já ela, membro VIP, cartão ouro, do clube das feministas pós-modernas, executou exatamente o mesmo movimento em direção ao objeto caído.

Aqui começa toda aquela melação de olhos nos olhos, almas que se encontram e blá, blá, blá, com a qual já desperdiçamos mais árvores do que deveríamos. Então vamos fazer uso de um interessante recurso novelístico-televisivo:

...cinco anos depois...

Naquele ano os dois concluíram a universidade. Receberam seus certificados de gente grande e, como presente dos pais dela, ganharam o apartamento. Como presente dos pais dele, a mobília.

Agora era marcar a data da festa de noivado e iniciar os preparativos  para casamento.

Tudo simples e organizado, num bordado de pontos contados.

No jantar de noivado, ambas as famílias estavam reunidas em torno da mesa. Toalha de um linho branco, virgem, que pertencera ao enxoval da mãe da noiva. Afinal, algo tinha de ser virgem em uma cerimônia tão ortodoxa.

No momento certo, o pai do noivo sinalizou-lhe com o olhar que era chegada a hora de pedir a mão da moça.

É obvio que o rapaz não entendia o porquê de pedir a mão, se já haviam compartilhado de seus corpos, tudo o que havia a ser compartilhado mas, se sempre havia sido assim, menos difícil era seguir o movimento por inércia, geração após geração.

Pedido feito, aceito, discursado e brindado.

Após o farto festim, retiraram-se os convidados e os pratos da mesa.

Os pais da noiva dirigiram-se para seu leito realizados, conscientes de estarem a um passo de delegar a outrem a responsabilidade que lhes pertenceu durante tantos anos.

Ela, na sala, resolveu descansar o corpo na poltrona preferida de ambos, presente já prometido pela mãe, assim que alçasse voo para o próprio ninho.

Por uma daquelas ironias sacanas do destino, ele que agia como se o celular fosse um de seus órgãos vitais, absolutamente indispensável ao funcionamento sadio de seu ser, não o percebera deslizar escuso de seu bolso e refugiar-se, obsceno, na fenda entre a almofada e o encosto da poltrona.

A curiosidade e a feminilidade formam uma mistura absolutamente homogênea.

Mensagens. Caixa de entrada.Uma a uma.

Diante da incapacidade de odiá-lo na presença da traição incontestável, odiou a infeliz criatura que teve a amaldiçoada ideia de manter aqueles significantes dos quais ela não conseguia distinguir bem o significado, registrados, gravados a ferro e fogo em sua retina, em seu coração e em sua mente.

Mentiras. Poderiam ser medusas, transformando seres em pedra com um simples olhar. Mas eram mentiras, e transformaram instantaneamente em pedra tudo o que ela sentira por ele.

Com a calma da frieza, ou a frieza da calma de quem já não sente mais nada, ela tirou a aliança recém presenteada, como quem despe a confiança que não lhe pertence mais.
Levou-a à boca e engoliu, iniciando o processo de digestão da descoberta.

Na manhã seguinte, seu intestino concluiu o processo. Com o cuidado de quem finaliza uma obra de arte, ela escolheu uma embalagem vermelha,como a paixão que um dia sentira e aveludada,como as carícias que tantas vezes trocaram.

Então forrou-a com um papel branco, que lembrava a pureza de sentimentos, que na verdade não habitara a relação deles.

Por um instante ela parou e observou a caixa. Sua mente entrou em modo stand by, mas suas mãos continuaram.

Tranquilamente calçou suas luvas de borracha e coletou a matéria que seu intestino produzira na primeira hora da manhã, com a aliança incrustada, e acomodou o preciosos presente na luxuosa caixa.

Ligou para um serviço de entregas e enviou-o ao endereço de trabalho do ex-amor.

Em seguida arrumou as malas, escreveu um curto bilhete para os pais, juntou seu passaporte aos demais documentos e dirigiu-se ao banco.

Lá chegando, sacou até o último centavo da conta conjunta que mantinham para as despesas da festa e lua de mel, depois rumou para o aeroporto, devidamente indenizada.

Saldo da relação = saldo da conta bancária.










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