Chovia. Uma garoa fina, gelada e persistente, acariciando as cores desbotadas dos retalhos de embalagens que vestiam os esqueletos dos casebres daquele subúrbio metropolitano. Apenas mais um reduto de muita pobreza e poucos sonhos. Aqueles que lá nasciam, conheciam bem os estreitos limites de seu mundo, situado entre o morro e o mato, com entrada pelo pórtico e saída pelo em sonho.
Na cama compartilhada com os três irmãos pequenos, Henrique cerrava os olhos e ouvidos para tentar dormir. Aconchegados uns aos outros, espantavam o frio, hóspede indesejado que invadia a casa por todas as frestas e, aproveitando-se das poucas cobertas, dividia também a cama.
Não que eles reclamassem.
Não conheciam outra realidade, nem outra rotina, nem outra cama. Viam que as pessoas na televisão dormiam em lugares estranhos, colchões sobre colchões, travesseiros sobre travesseiros, cobertas sobre cobertas. Era mesmo um mundo esquisito aquele da tela, onde pessoas dormiam sozinhas em uma cama, onde cabiam pelo menos quatro.
Enquanto assistiam a novela, em silêncio para evitar a ira da mãe, que chegava sempre transtornada com o excesso de carências, reclamando seu momento de fuga, Henrique lembrava das explicações da professora de português: novela era um tipo de ficção - uma coisa inventada. Então era mais fácil entender todas aquelas camas, travesseiros e cobertas para cada pessoa inventada.
Aquelas mães de novela também só podiam ser inventadas! Nunca gritavam, nem pegavam os filhos pelos cabelos para bater a cabeça deles na parede. Henrique sonhava em ser "filho de novela", como sonhava em voar sobre a cidade, para ver sua casa de cima, como o professor mostrara a casa dele no tal do Google Earth. É que a tela do computador, diferente da tela da televisão, mostrava coisas de verdade, bichos de verdade, gente de verdade.
Mas a Vila Cocô não aparecia no Google Earth...será que que aquele lugar não existia?? Bom, no computador não existia mesmo. Henrique pensou um pouco, e chegou a uma conclusão: todas aquelas casas de retalhos, que abrigavam gente em pedaços; que aqueciam o corpo com cobertas de trapos e o espírito com retalhos de sonho só existiam ali, entre o morro e o mato.
Para aqueles milhões de pessoas que o professor diziam estarem interligados pelos computadores no mundo todo, os casebres, ele, a mãe, os irmãos, vizinhos, gatos, cachorros e galinhas eram só ficção.
E ele, um dia, teria que parar de sonhar com camas e mães de novela e vôos pelo mundo, e fazer a única escolha que lhe seria dada: mato ou morro.
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