domingo, 7 de julho de 2013

Adão e Eva

   
Eva suava a cântaros, curvada sobre a plantação de batatas. Suas mãos, mesmo jovens, eram tão duras quanto sua vontade. Guerreira de berço, sem ninguém por ela, eram os braços que lhe garantiam o alimento do dia e o pouso da noite. O sol fustigava a pele mestiça impiedosamente. Os longos cabelos, negros e lisos, guardados na rede em torno da cabeça, trazia-os encharcados de suor.

     Tentava decidir que histórias contaria aos filhos da patroa, antes de colocá-los na cama naquela noite. Eram suas histórias que os faziam dormir logo e lhe permitiam treinar as letras nos preciosos papéis de pão, cuidadosamente passados e costurados no formato de caderno. Mal sabia Eva que, muitos anos depois, aquelas mesmas histórias iriam colorir as tardes de suas netas, na casinha de boneca ao fundo do pátio, logo depois do milharal.

     Enquanto vagava por seu mundo imaginário, onde bruxas trançavam as crinas dos cavalos e davam nós nos cabelos de menininhas que não se penteavam, ela nem percebeu o "psssssiiiiiiuuuu" do jovem que executava a mesma tarefa braçal, sob o mesmo sol escaldante, do outro lado da cerca que dividia o batatal.

    Se soubesse nesse momento, quantas vezes ele a faria chorar, talvez jamais houvesse levantado seu olhar em direção daqueles olhos cor de céu de verão. Ou tivesse feito igual, vá saber. Afinal, momentos bons também existiram. E amor. E filhos. E filhas. E netos. E netas. E genros. E noras. E almoços de domingo, para toda a familia. E bacias de batata em cubos esfriando em cima do tanque. E festas de natal e ano novo. E nascimentos e velórios. E batizados e casórios. Uma vida inteira.

     Mas naquele momento crucial, Eva não conhecia esta história. Adão tampouco. Ela sabia apenas que aquele olhar azul á sua frente era fresco como as águas da cachoeira de basalto, e a fazia esquecer completamente o calor, o suor, o cansaço. Ele sabia apenas que aquela pose de nobreza que ela envergava, mesmo quando se curvava sobre a terra ressecada, esvaziava a mente dele de qualquer outra imagem ou pensamento.

    Adão sabia que era bonito. Eva sabia que era forte. Apaixonaram-se ao primeiro olhar. Ela atirou uma batata recém colhida, na direção dele que, distraído pela beleza dela, nem viu o tubérculo voando veloz em sua direção. A batata pousou certeira bem no meio da testa do incauto Adão, que tombou sobre a terra seca cheia de ramas surpresas, que aguardavam apenas suas mãos puxando-as, e não seu corpo inteiro, empurrando-as terra adentro.

     Eva assustou-se. Não era sua intenção nocautear o moçoilo deste modo. Queria tão somente chamar sua atenção. Mas não havia SMS, nem uma cobra para levar recado, então a batata pareceu-lhe a melhor opção, no primeiro momento. Mas agora arrependia-se.

     Pulou rapidamente a frágil cerca que separava os dois campos e aproximou-se do corpo dele, estendido de todo o comprimento sobre o chão poeirento. Mal ela debruçou-se sobre o rosto angelical, ele abriu aqueles olhos de basalto azul e ela resvalou para dentro do olhar, de onde jamais conseguiu se libertar.

     Quarenta anos, 5 amantes, centenas de brigas, seis filhos, e oito netos depois, perguntei a ela por que nunca havia se separado dele. Sua resposta foi simples e sábia: "Um dia entenderás, minha neta..."

     Pois bem, esta Eva não conhecia o paraíso. Sequer teve a chance de ser expulsa. Mas jamais reclamou disto. Partiu a taquara no joelho e deu metade ao seu Adão, para que pudessem resolver a desavença em pé de igualdade, mesmo que seus braços mais fortes lhe permitissem surrá-lo  exemplarmente em frente a todos os ávidos vizinhos que se aglomeravam em torno da cerca; esperou pacientemente por ele todas as vezes que se ausentou para longas visitas ás amantes; cuidou e proveu o sustento dos filhos todas as vezes que ele se mostrou incapaz de fazê-lo, por impossibilidade ou desinteresse; amou-o resilientemente até o dia em que seu coração cansou.

     Neste dia, Eva ganhou seu paraíso. Mas aposto que ficou sentada na entrada pelos três anos que seu Adão demorou para ir ao seu encontro. Então, livres de pecado, os dois atingiram de mãos dadas o princípio da criação.

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