Também, não adiantou nada me contar a "verdade" deles. A minha vó Jóvi seria sempre a menininha arteira que reclamou dos rapazes que não tiravam as moças para dançar na minha festa de quinze anos, levantou-se e tomou conta da pista de dança, no auge dos seus noventa e tantos anos.
Eles que ficassem com a Jovelina velhinha deles!
Com seu cheirinho de sabonete Pom Pom, e batom nos lábios, ela nos recebia sempre com um abraço gostoso e quentinho e eu adorava roçar o rosto no dela porque a pele parecia papel de seda.
"No dia em que vocês chegarem e eu estiver sem batom ou fedendo, me enterrem que estou morta!", ela dizia. Tinha verdadeiro pavor do cheiro de gente velha.
Eu não entendia o que aqueles olhinhos faiscantes e aquela pele tão macia e com cheirinho de bebê tinham há ver com velhice. E a memória dela? Era incrível! Contava histórias cheias de detalhes e lembrava cada palavra de reza e benzedura, cada erva para cada mal.
Benzia espinhela caída e quebranto como ninguém. Fazia a benzedura com galho de arruda fêmea ou com carvão em brasa. De olhos fechados, murmurava suas rezas e espantava tudo o que fosse ruim.Vinham gentes até da capital para se benzer com ela.
Também ensinava as mães da família a benzerem os bebês que dormiam de olhos entreabertos. Era quebranto, certo! Coisa muito perigosa para criança. Era preciso pendurar uma figa de ouro em pulseirinha e benzer antes de dormir. Nada melhor contra quebranto do que benzedura de mãe.
Próximo do fim de ano todos a visitavam para receber seu patuá da sorte, uma almofadinha de feltro recheada com ervas mágicas, que deveria ser guardada ao longo do ano para dar sorte. Aproveitando a visita as mulheres pediam que ela lesse a borra do café ou a clara do ovo. Era batata! Não errava uma! No ano em que viu um véu, minha mãe casou. No ano em que viu um caixão, minha tia perdeu a filhinha.
Antes de ir embora, já sabíamos: era ir até o portão e cada um colher seu galinho de arruda. Em poucos segundo e poucas palavras ela brandia o galho em torno do vivente e, de verdinho e viçoso, o galho logo ficava cinzento e murcho. Era porque absorvia toda a energia ruim, ela explicava. Para mim, era mágica. Bruxaria boa. Vai ver que é por isso que a bruxa da história sempre me desperta carinho. Aplaudi Malévola de pé!
Mulher forte que era, não se queixava da vida. Ficou viúva com vinte e poucos e criou os filhos sozinha. Não quis mais saber de homem, depois do bisavô. Também pudera, as histórias sobre ele eram escabrosas.
Homem bruto, do campo, resolvia tudo na espora, no chicote ou no tiro. Pendurava o filho desobediente pelos braços num galho de árvore, depois chicoteava até ver a carne. Então atirava um balde de salmora por cima e deixava lá, por um tempo.Sem coragem de enfrentá-lo diretamente, a bisa esperava ele sair de perto e acudia o filho, refugiando-o em esconderijo seguro.
Me contaram que quando estourou a úlcera do bisavô, desesperada, ela chamou socorro para irem ao hospital. Naquele tempo e lugar as pessoas só procuravam um médico em último caso, quando já estavam muito mal mesmo. Deste modo, muitos acabavam morrendo. Daí a crença de que médicos matavam as pessoas.
A última coisa que o bisavô queria era ir ao médico porém, vomitando sangue e muito fraco, teve que se sujeitar à decisão da mulher, pela primeira vez na vida. Mas não, facilmente. À beira da morte, entre xingamentos e palavrões, disse que ela queria o seu fim, mas não conseguiria. Ela, cansada de uma vida inteira de submissão, teve seu único ato de insurreição contra o poder masculino e disse a ele:
-"Quer saber? Tu vais morrer sim! E eu vou fazer xixi em cima da tua sepultura!"
Bom, ninguém sabe ao certo se ela cumpriu a promessa, mas que teve tempo de sobra para isso, teve. Viveu tranquilamente até os 106 anos. Viúva, livre e forte.